A Menina Invisรญvel (Ou o que sobra de uma ausรชncia)
Ela se chamava Helena — mas isso pouco importa, porque o nome nรฃo muda o destino de quem jรก nasceu sem lugar no mundo. Nรฃo era mรกrtir, nem santa. Apenas uma menina com olhos opacos. E isso, veja bem, nรฃo รฉ figura de linguagem. Os olhos dela realmente nรฃo refletiam luz. Tinham a escuridรฃo de quem desistiu antes mesmo de entender o que era viver.
Desde pequena, Helena flutuava pela casa como quem nรฃo quer perturbar o chรฃo. Era filha, sim, mas nรฃo a preferida. Irmรฃ, talvez, mas nunca a lembrada. Estava lรก — como os mรณveis antigos, como a poeira no alto do armรกrio. A existรชncia dela era um ruรญdo abafado. Chorava? Sim. Mas sem som. Sorria? Raramente. E ninguรฉm via.
Na escola, virou silรชncio ambulante. Os colegas riam da sua organizaรงรฃo exagerada, da forma como se escondia em si mesma. Talvez pensassem que era esnobe. Nรฃo era. Era sรณ medo — um medo quieto, que aprendeu a vestir como armadura.
Cresceu. Ou talvez apenas envelheceu com o passar dos dias. Trabalhava. Voltava pra casa. Dormia. Repetia. Era boa no que fazia, mas nรฃo era amada por ninguรฉm. Nรฃo havia uma alma no mundo que soubesse a temperatura do seu abraรงo.
Mesmo assim, Helena era dessas pessoas que ofertam o que o mundo nรฃo merece. Sorria para desconhecidos. Ajudava sem esperar gratidรฃo. Amava em silรชncio. Doรญa em silรชncio. E nรฃo reclamava — porque quem nasce invisรญvel aprende que o grito nรฃo ecoa.
Naquela noite — uma noite como todas as outras, que poderia ter sido terรงa ou quinta — ela atravessou a rua pensando no que cozinharia ao chegar. Talvez arroz e ovo. Talvez sรณ o silรชncio.
O cรฉu era cinza. A alma tambรฉm.
O carro veio rรกpido. O motorista no celular. Helena no mundo da ausรชncia. Nรฃo houve grito. Nรฃo houve drama. Houve sรณ o fim.
E entรฃo — veja o absurdo — notaram sua falta. Pela primeira vez, o mundo estranhou o silรชncio que sempre ignorou. A ausรชncia dela pesou. Como um sussurro que, de tรฃo longo, virou grito.
A menina invisรญvel enfim deixou de ser.
Mas era tarde.
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